"à queima roupa os corpos são dança, são matéria... em movimento, com interrupções, pausas. pausas.
pois precisa-se de silêncio."
pois precisa-se de silêncio."
foi com este ritmo de palavras que o movimento deu forma ao palco, um fulgor que bafejou a sala de estar, fazendo vénia ao tempo e fazendo troça à morte.
"porque a dança dos antigos é igual à dança contemporânea. porque o que as une é a morte."
e foi bonito ver a dança de dois corpos, de dois amantes, marido e mulher, em uníssono e emparelhada, ele, com o cabelo já a caminhar para o grisalho e ela, com ligeiros vincos que lhe começam a escavar a testa... ambos, os dois, os dois, os dois juntos, e sem medo, tiraram o chapéu à morte.
"que venha."
imaginem: um palco branco, estático, inerte e inexpressivo. agora imaginem esse mesmo espaço em constante rotação. metamorfose flutuante. e liquefeita. suspensa. fluida pelos copos ondulantes que se derretem ao som de músicas que aquecem a atmosfera. fria. e branca. e estática. inerte e inexpressiva desse espaço. ambíguo. desse mesmo palco. desse teatro. pontuado pelo som. dissonante e descontínuo. de um tempo. descompassado. como a música de Sasseti. um som e um espaço e dois corpos. ridiculamente raspado por um relógio verde kitsh. A Leonor roubou o relógio e estamapou o maldito e foleiro e estúpido e pindérico relógio verde ultra-kitsh na cara, na sua cara, e goza, gozando com a desmesura do tempo. desmedido. com a cara do Paulo, também. desafiando-o. "não sejas tão sério". Leonor, rebola-se no chão, gozando o bendito tempo e gozando com o maldito tempo - tic-tac -tic-tac - da cara do Paulo. verde. horrível. o verde é foleiro. Leonor aproveita e insinua-se. desnudando-se ao seu amor. seu amante. Com o relógio estampado na cara. num espaço que se ia reanimando. sem mando. e sem tempo. com todo o tempo. pelo tic-tac do tempo. gozaram-se os corpos em cada gesto e todo o movimento. criando-se em cada gesto e movimento. foi assim. Pelo menos para mim. no meu imaginário. tão real. e tão meu. foi assim. foi real e verdadeiro. porque senti. foi o que vi. os meus olhos viram assim, em mim e para mim. Atrás, uma tela plana, sem o fio cortante do horizonte a separar os dois planos da representação. Na tela, os corpos ficavam suspensos. Na tela, uma superfície espelhada. por reflexos da representão dos corpos em dueto, que dançavam no palco. Na tela: surgiam os mesmos corpos que dançavam, sincronizados no palco em tempo real, mas já não num espaço branco, estático, inerte, e inexpressivo. Na tela, um horizonte longínquo com esses mesmos corpos mas agora, suspensos, adulterados, e ainda mais fluídos e maneiristas, projectados por um sistema termo, e foto-sensíveis. E na tela: em cada gesto em movimento, um rasto de cor-de-laranja, violeta e amarelo. quase líquidos. Na tela, já não eram só os corpos, era a "alma. uma só alma. colorida." - disse Paulo. A tela já não era tela: era um arco-íris, esculpidos pelos gestos dos corpos em movimento. formas em transitus contiuum, um campo onírico, ilusório, uma realidade-outra fora daquele campo branco e inerte e inexpressivo. era colorido. era um tempo fora do tempo e daquele espaço. daquele espaço de tempo. "porque a forma sem movimento e luz é morte. do corpo de dois. nasce a alma de um só corpo" - corta o gesto e o tempo. Paulo Ribeiro. com pausa. a sua dança e a dança da sua mulher, Leonor. ele interrompe. interrompendo-me. a mim.e eu saio do meu lugar. e por momentos, por breve momentos de tempo, quis, quero. sair. do lugar onde estive e estou sentada. branca. estática. inerte e inexpressiva. por breves momentos quis ser e fazer como rei David e dançar nua em frente de um deus desconhecido. junto deles, naquele palco, naquele espaço, e naquele espaço de tempo. fora de um tempo. nada branco e muito menos expressivo. um espaço iluminado e reanimado pela forma metamorfoseado dos corpos. a luz era jorrada pela tela, colorida por aquelas três cores foto-sensíveis e termo-dinâmicas dos corpos, aquela luz era o "paraíso" - disse Paulo. interrompe Paulo Ribeiro. novamente. a dança. com uma semi-breve de tempo. sem gesto. com a luz quente, quase ocre, ocre telúrico da tela, uma violeta quase púrpura diluída em tons lumínicos de amarelos degradés. era o paraíso. também eu fui tocada. e por momentos também queria rasgar a tela e entrar naquele paraíso. um lugar-meu-outro. imaginário. mas sagrado. rasgado pela luz. de formas indefinidas, mas vividas, em metamorfose constante. também eu não me importava de morrer naquele momento. naquele preciso momento. morreria feliz. muito feliz. morrer num êxtase e em êxtase de luz. qual Santa Teresa de Bernini. morreria feliz naquele espaço, naquele palco. sem sentimento de culpa, por não me importar de abandonar aqueles que tanto amo. queria abandonar-me. ser transportada para aquela luz e cor naif. pura. onde um deus habita. suspender-me e seguir fervorasamente uma crença e em devoção um deus, sem rosto, sem corpo e sem forma. um deus, um alá, além, e viver um puro momento de fervor iconoclasta, pois deus revelou-se-me desfigurado, pela luz, no arrepio na minha pele. e os meus dedos tactearam o relevo dos meus pêlos que se eriçavam tentando decifrar as palavras. não consegui. fui arrebatada.
Paulo Ribeiro interrompe. novamente. e diz: «assim como as palavras, também os corpos deambulam, sinuosos, com movimentos, com hesitações avanços e recuos e pausas, também. não vamos dizer o que é a dança, a boa e a má dança, como se dança. não vamos dizer. não sei o que isso é»
E eu digo. ou queria ter-lhes dito:
.levem-me convosco. quero dançar. quero continuar a dançar. como sempre. como dantes.
.levem-me convosco. quero dançar.
...
este foi o último espectáculo de dança de Paulo Ribeiro. Porque o seu corpo, a idade do seu corpo,
os ossos do seu corpo. embora lhe pertençam. e sejam sua propriedade. sua. já não lhe obedecem. Porque o tempo, ordena o gesto, comanda. e é matreiro. condiciona e limita. ferindo a alma. que nem sempre gesticula. O movimento em palco do Paulo cessou, mas o rasto de luz e a cor do corpo, do seu corpo. continua, pela sua alma adentro... pela tela dos meus olhos adentro. num rasgo largo e leve, nada pesado,... sem corpo, sem matéria...
pois a sua alma... essa, repito: perdura... e a Companhia. a sua. companhia, essa... continua.
porque agora decidi ser feliz e fielmente fiel a mim própria. sou felizmente nada, posso dizer tudo. estou feliz. sem cargos nem encargos. sem factos e fatos. apenas eu e os meus actos. em constante movimento. sempre. "porque o xis precisa de si, a criar, sempre ".
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