Ontem, fiquei uns bons três quartos de hora com os ouvidos retidos no carro só para ouvir o interessantíssimo debate da tsf cujo tema central incidia sobre a urgência de novas propostas, metodologias e critérios para a recuperação do património arquitectónico. Muito embora o estômago, já colado às costas, denunciasse a minha vulgar condição humana, escutei atentamente as considerações dos convidados, em especial as intervenções do arq. Nuno Teotónio Pereira.
Absolutamente esclarecido, desafectado dos academismos bolorentos, dos princípios positivistas restauracionistas resultantes do entendimento estético romântico - absolutamente anacrónico, obsoleto, redutor, alheio e desajustado perante as questões do novo milénio no que toca à preservação, conservação e salvaguarda dos bens arquitectónicos - , reputava o arquitecto para a necessidade de libertar as práticas de reabilitação de tais constrangimentos historicistas.
Não é preciso nos deslocarmos aos "centros históricos" das grandes capitais de distrito para nos apercebermos da dimensão das sábias palavras do arquitecto. Basta abrir as janelas do nosso quarto, olharmos ao nosso redor e os exemplos são gritantes. Em todas as cidades do nosso país, as intervenções (agressões) cometidas pautam-se, grosso modo, por linhas que primam pela política do fachadismo nauseante, decorativo, maquilhante, à laia dos contos de fadas disneyscos...bonitinhos, desastrosamente mimética. de pastiche. Um discurso que prima pela aparência de um imaginário que se pensa ter sido ou existido, e que acaba por deturpar e desvirtuar a própria identidade e longevidade do edifício, pelo medo mesquinha de se assumir a marca do tempo presente na sua intervenção. Uma prática corrente que o torna invariavelmente refém de um tempo histórico passado, morto.
Acredito que o Nuno Teotónio no seu discurso não pretendia suplantar o legado histórico de um determinado bem arquitectónico em detrimento de uma reconstrução ex-nuova, desprovida de um herança genética. Parece-me, antes, que o arquitecto alertava para a necessidade de enterrar os mortos, relevando a assinatura do tempo presente. Marca da nossa contemporaneidade. Porque do presente se faz também a História, porque o momento presente veicula uma realidade sígnica tão válida como em qualquer outro período Histórico. Parece-me que o arquitecto reivindicava a libertação dos estigmas, determinismos e contaminações pretensamente historicistas e redutoras, das falsas questões e clichés associados aos critérios de valorização e de salvaguarda do património arquitectónico, nomeadamente do simbolismo pretensamente intrínseco de que se reveste determinado imóvel, ou da pretensa salvaguarda da memória afectiva.
Contundente e sem floreados, Nuno Teotónio remata o seu discurso com a simplicidade de uma curtíssima frase que só os grandes mestres conseguem elevar graças à profundidade do seu pensamento e verticalidade do seu espírito :
Só ontem, depois de ter ouvido estas palavras compreendi os meus amigos quando por vezes, e não raras vezes, me interpelam os pensamentos com questões aparentemente inócuas. A Andreia, por exemplo, tem por hábito perguntar-me onde escondo as minhas duas antenas e qual a marca de fond-teint que uso para disfarçar tão bem a minha pela verde, e sem dó nem piedade tem ainda a distinta lata de me pedir para lhe apresentar o E.T.
Ela tem razão. A minha memória não se extingue. Era suposto extinguir-se, não era?
Susan Sontag, Rosalind Krauss, Freud e tantos outros autores que, entre diversos temas de estudo, se ocuparam do sistema neurológico no que concerne aos meandros dos mecanismos da percepção e comunicação abordam temas como os da amnésia, da intermitência, do esquecimento, do estado de choque enquanto condições necessárias para aquisição selectiva do conhecimento, as quais funcionam simultaneamante como mecanismos de defesa cognitiva, inconsciente, necessariamente volátil, por forma a fazer frente/protegendo-nos das ininterruptas agressões visuais e solicitações a que os nossos sentidos são alvo. numa era absolutamente povoada por léxicos bélicos, bombardeada por imagens visuais e sonoras que constantemente atingem a nossa memória; era permeável à torrente de inputs que recebemos sem nos darmos conta. Pelo que, para bem da nossa sanidade mental, da regeneração da memória, o cérebro vai seleccionando e anulando registos sensoriais e cognitivos que foram sendo apreendidos diariamente tendo em vista a assimilação de outros novos dados, brand new. A memória, como um disco rígido, vai-se apagando e anulando em catadupa e sistematicamente... para o nosso bem...
_______...
Quem me dera ser assim . Normal. Esquecer-me de tudo. Tudinho. Começar a receber inputs, num disco rígido clean, virgem, imaculado. Apagar. Apagar-me. Formatar o passado, a memória simbólica e historicista, implodir ou explodir o arranha-céus que rasga e fere o meu espaço. Apesar da minha rica cabeça ser uma poderosa super-potência, os talibans não querem nada comigo... Quem me dera fazer do meu cérebro um ground zero et voilá! Brand newinha em folha branca.
Queria ser como Le Corbusier e fazer tábua rasa do passado e do legado histórico, demolir as malhas urbanas enredadas e labirintícas, construir o novo! Clean. Mas eu detesto a arquitectura corbusiana, compreendo o princípio emancipatório, o enquadramento mental e artístico, mas detesto. É fria, despida, impessoal, estanderdizada e emparadedada - uma máquina para habitar...?? non merci, je refuse!. Alegorias tão bem retratadas por Chirico nas suas composições solitárias, monolíticas, opressivas... ou por Antonioni numa bela cena d' O Eclipse... repleta de lugares perdidos... mudos, isolados, ausentes... monolíticos, também...
Fazia-me bem gostar da arquitectura de Niemeyer que é belíssima. Mas não gosto. É imberbe e solitária. Desprovida do pretérito-perfeito de um tempo. Desprovida de registos, de lembranças, de memória. Uma arquitectura orfã, sem parentesco. Bolas, como gostava de querer passar a gostar de arquitecturas descontaminadas, desafectadas, desinfectadas e esterilizadas. Criadas em terreno novo.
Não é preciso nos deslocarmos aos "centros históricos" das grandes capitais de distrito para nos apercebermos da dimensão das sábias palavras do arquitecto. Basta abrir as janelas do nosso quarto, olharmos ao nosso redor e os exemplos são gritantes. Em todas as cidades do nosso país, as intervenções (agressões) cometidas pautam-se, grosso modo, por linhas que primam pela política do fachadismo nauseante, decorativo, maquilhante, à laia dos contos de fadas disneyscos...bonitinhos, desastrosamente mimética. de pastiche. Um discurso que prima pela aparência de um imaginário que se pensa ter sido ou existido, e que acaba por deturpar e desvirtuar a própria identidade e longevidade do edifício, pelo medo mesquinha de se assumir a marca do tempo presente na sua intervenção. Uma prática corrente que o torna invariavelmente refém de um tempo histórico passado, morto.
Acredito que o Nuno Teotónio no seu discurso não pretendia suplantar o legado histórico de um determinado bem arquitectónico em detrimento de uma reconstrução ex-nuova, desprovida de um herança genética. Parece-me, antes, que o arquitecto alertava para a necessidade de enterrar os mortos, relevando a assinatura do tempo presente. Marca da nossa contemporaneidade. Porque do presente se faz também a História, porque o momento presente veicula uma realidade sígnica tão válida como em qualquer outro período Histórico. Parece-me que o arquitecto reivindicava a libertação dos estigmas, determinismos e contaminações pretensamente historicistas e redutoras, das falsas questões e clichés associados aos critérios de valorização e de salvaguarda do património arquitectónico, nomeadamente do simbolismo pretensamente intrínseco de que se reveste determinado imóvel, ou da pretensa salvaguarda da memória afectiva.
Contundente e sem floreados, Nuno Teotónio remata o seu discurso com a simplicidade de uma curtíssima frase que só os grandes mestres conseguem elevar graças à profundidade do seu pensamento e verticalidade do seu espírito :
"a memória extingue-se e mais nada. Extingue-se e pronto. A memória extingue-se. Apaga-se"!
______...
Só ontem, depois de ter ouvido estas palavras compreendi os meus amigos quando por vezes, e não raras vezes, me interpelam os pensamentos com questões aparentemente inócuas. A Andreia, por exemplo, tem por hábito perguntar-me onde escondo as minhas duas antenas e qual a marca de fond-teint que uso para disfarçar tão bem a minha pela verde, e sem dó nem piedade tem ainda a distinta lata de me pedir para lhe apresentar o E.T.
Ela tem razão. A minha memória não se extingue. Era suposto extinguir-se, não era?
Susan Sontag, Rosalind Krauss, Freud e tantos outros autores que, entre diversos temas de estudo, se ocuparam do sistema neurológico no que concerne aos meandros dos mecanismos da percepção e comunicação abordam temas como os da amnésia, da intermitência, do esquecimento, do estado de choque enquanto condições necessárias para aquisição selectiva do conhecimento, as quais funcionam simultaneamante como mecanismos de defesa cognitiva, inconsciente, necessariamente volátil, por forma a fazer frente/protegendo-nos das ininterruptas agressões visuais e solicitações a que os nossos sentidos são alvo. numa era absolutamente povoada por léxicos bélicos, bombardeada por imagens visuais e sonoras que constantemente atingem a nossa memória; era permeável à torrente de inputs que recebemos sem nos darmos conta. Pelo que, para bem da nossa sanidade mental, da regeneração da memória, o cérebro vai seleccionando e anulando registos sensoriais e cognitivos que foram sendo apreendidos diariamente tendo em vista a assimilação de outros novos dados, brand new. A memória, como um disco rígido, vai-se apagando e anulando em catadupa e sistematicamente... para o nosso bem...
_______...
Quem me dera ser assim . Normal. Esquecer-me de tudo. Tudinho. Começar a receber inputs, num disco rígido clean, virgem, imaculado. Apagar. Apagar-me. Formatar o passado, a memória simbólica e historicista, implodir ou explodir o arranha-céus que rasga e fere o meu espaço. Apesar da minha rica cabeça ser uma poderosa super-potência, os talibans não querem nada comigo... Quem me dera fazer do meu cérebro um ground zero et voilá! Brand newinha em folha branca.
Queria ser como Le Corbusier e fazer tábua rasa do passado e do legado histórico, demolir as malhas urbanas enredadas e labirintícas, construir o novo! Clean. Mas eu detesto a arquitectura corbusiana, compreendo o princípio emancipatório, o enquadramento mental e artístico, mas detesto. É fria, despida, impessoal, estanderdizada e emparadedada - uma máquina para habitar...?? non merci, je refuse!. Alegorias tão bem retratadas por Chirico nas suas composições solitárias, monolíticas, opressivas... ou por Antonioni numa bela cena d' O Eclipse... repleta de lugares perdidos... mudos, isolados, ausentes... monolíticos, também...
Fazia-me bem gostar da arquitectura de Niemeyer que é belíssima. Mas não gosto. É imberbe e solitária. Desprovida do pretérito-perfeito de um tempo. Desprovida de registos, de lembranças, de memória. Uma arquitectura orfã, sem parentesco. Bolas, como gostava de querer passar a gostar de arquitecturas descontaminadas, desafectadas, desinfectadas e esterilizadas. Criadas em terreno novo.
Mas não. Continuo a gostar dos meus arquitectos clássicos, que continuam a aceitar e tomam como desafio o confronto de diálogos espacio-temporais que se intercepcionam, da convivência pacífica de espaços novos e de memória como fizeram Fernando Távora ou Siza. Criaram uma arquitectura de diálogo enlaçada em reflexos e linhas que antecipam sempre algo. Novo.
Porque não sou arquitecta. Porque não sou engenheira informática. Porque também não sou alienígena. Sou complexa. Eu. Eu gostava apenas de fazer e ser como a Andreia. Pragmática. A GRANDE Andreia que consegue apagar tudo e todos com uma altivez estonteante. Não concebe um dia sem a formatação de alguns dos seus dias. Limpa diariamente o seu disco rígido. Invejo-a por isso. Parva sou eu que vivo presa a back-ups. Parva sou eu que me formei/deformei, especializei/despecializei-me numa ciência que me obriga a recorrer à memória e ao belo. Parece-me o bode expiatório perfeito para me lembrar apenas dos momentos belos. passados. do passado.
Parva sou eu... que teimo em desenvolver o músculo mnemónico, parva sou eu que devia viver a vida alheando-me de tudo e de todos, abandonando definitivamente o luto dos mortos que deveriam estar enterrados. Parva sou eu que devia cultivar o carpem diem, como faz a minha Andreia.
A culpa não é minha, a culpa é da minha profissão que diariamente me faz evocar e escrever sobre o belo e sobre a memória.
E por falar em belo...
Se obras há que me provocam inveja são as cabeça de Modigliani ou as musas de Brancusi. Pudesse eu ser assim. Pudesse eu repousar na serena, polida, dúctil beleza e frieza dos pensamentos... como eu queria. Ter uma cabecinha opaca e brunida e alva como o mármore imperial de Carrara, ou o dourado aurático do metal cintilante em vez das minhas duas antenas e da minha pele verde.
Não tenho o hábito de emprenhar pelos ouvidos, mas ouvir as palavras de Nuno Teotónio Pereira fez multiplicar os macaquinhos que povoam o meu rico cérebro. Demasiado pequenino, porém, para tanta macacada.
Porque não sou arquitecta. Porque não sou engenheira informática. Porque também não sou alienígena. Sou complexa. Eu. Eu gostava apenas de fazer e ser como a Andreia. Pragmática. A GRANDE Andreia que consegue apagar tudo e todos com uma altivez estonteante. Não concebe um dia sem a formatação de alguns dos seus dias. Limpa diariamente o seu disco rígido. Invejo-a por isso. Parva sou eu que vivo presa a back-ups. Parva sou eu que me formei/deformei, especializei/despecializei-me numa ciência que me obriga a recorrer à memória e ao belo. Parece-me o bode expiatório perfeito para me lembrar apenas dos momentos belos. passados. do passado.
Parva sou eu... que teimo em desenvolver o músculo mnemónico, parva sou eu que devia viver a vida alheando-me de tudo e de todos, abandonando definitivamente o luto dos mortos que deveriam estar enterrados. Parva sou eu que devia cultivar o carpem diem, como faz a minha Andreia.
A culpa não é minha, a culpa é da minha profissão que diariamente me faz evocar e escrever sobre o belo e sobre a memória.
E por falar em belo...
Se obras há que me provocam inveja são as cabeça de Modigliani ou as musas de Brancusi. Pudesse eu ser assim. Pudesse eu repousar na serena, polida, dúctil beleza e frieza dos pensamentos... como eu queria. Ter uma cabecinha opaca e brunida e alva como o mármore imperial de Carrara, ou o dourado aurático do metal cintilante em vez das minhas duas antenas e da minha pele verde.
Não tenho o hábito de emprenhar pelos ouvidos, mas ouvir as palavras de Nuno Teotónio Pereira fez multiplicar os macaquinhos que povoam o meu rico cérebro. Demasiado pequenino, porém, para tanta macacada.
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